segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

O Coração

O coração quando se abre, abre-se imarcescível. 
Repleto de uma linguagem perene e indizível.
Selvagem, nunca míngua à própria sorte.
Ao contrário, cresce numinoso e forte. 

Quem pode conhecer palavra que exprima 
A força que movimenta suas engrenagens?
Para dizê-la menos esfinge e mais rima,
Talvez que o amor esconda sua linhagem
 
No âmago da poesia. E que por isso, 
Toda ferida que do peito se origina
Conserve da dor a sua porção que ilumina.

Quem é que pode domar o próprio coração?
E no entanto, quantos são os que subjugam
Seus corações às esmolas de caprichos vãos?   



Imagem: Romana Grünfelder. 

Útero - Efêmera

Retorne ao seio d'leite sábio;
ao lar morno e sereno,
covil eterno, absoluto!
Os portões barulhentos e horrorosos aguardam,
permanecem de pé.
Mesmo após árduo aguaceiro de céu,
sopros vorazes de gigantes
e sussurros medonhos de monstrengos verdejantes,
sobrevivem como bom amigo fiel
- como um Pai ancião -
que não esquece, silencia copiosamente
com seus braços complacentes inabaláveis.
Adentre aos meus bosques laboriosos...
Prove das sublimidades,
tão quentes quanto
acerolas-verão
bolando entre os dentes,
aguando na languida língua.
Tão víboras pecãs
de segredos crocantes...
Prove da beleza das flores, perfeitas.
Roubaram suas cores d'alguma tinta sagrada.
Só para pincelar nos teus olhos tal miragem,
inspirar aos teus pulmões o dom generoso.
Cascatas de infinitas águas sou Eu,
banha tua carne sob meus panos translúcidos,
deixa que eu escorra pelo teu sexo rígido
e adormeça-te num gosto saboroso.
Conheça-me, Camaleão;
Conte-me sobre os teus desesperos,
grita anedotas, chora...
E durma, para sempre,
fecundado em meu útero de prazer efêmero.



Fotografia e edição de imagem: Lemmyni Ana

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Arquipélago Lunar

Esta é uma história curta.
Havia e nunca houve...
Certa vez.

O meu pai, um lume perdido na imensidão.
A minha mãe, duas colunas que se erguem 
sem nunca deixar verem o chão.
Não teve remédio.

Um só grande arquipélago de escuridões. 
Do Sol, sua existência só sabia-se de sonho.
Nesta de sonhar entre águas, secreto e selênico 
nasceu-me um certo temperamento táctil.

Desde então,
 hábil em adivinhações,
o bicho que sou deu num tipo lunático. 

Entre meus verborrágicos dedos,
a faina do bem e a lira do mal.
Sou o que pude ver e suportar.

E sendo para tanto, ou para pouco,
desejei salvaguardar toda a minha maneira de amar
bem na palma da minha mão.


Imagem: Artista desconhecido. 

Assombrada

Estou cansada deste fantasma que vejo.
Por insistência de entendê-lo foi que me peguei à deriva...
Numa liberdade sem gozo. 

Há mais forças do que pensei haver neste meu corpo. 
E ainda assim, não é exatamente do corpo 
Que provém todo o milagre que é suportar. 

Estou perpetrada por meus próprios pensamentos. 
Marcada pelo lugar que cresci, pelo gosto das coisas que gosto.
E principalmente pelo dissabor das que desgosto.

Nunca sei onde começo, e se é que deveria me concluir. 
Estou assombrada pela abissal lembrança de ter vivido 
E o não saber... O que fazer com o agora? 

Sempre estive.
O devir e seus incontáveis olhos. 
Será que eu me vejo, ou me devoro?
 
Pois diante desse espelho umbroso, a minha face avessa...
Revelando que este cansaço fantasmagórico
É o assombro que sinto de mim mesma. 


 Imagem: Aleigha Reott.

Esse Momento Infindo

Esse momento de paralisia em frente à porta,
Sem conseguir abri-la. 
Ele se repete, e repete... 
Eu estou ali, enredada
Na minha confusão.

Esse momento de pânico, suspensa na névoa,
Eu recuo diante da aflição.
Não sinto. Não me movo.
Anseio o sopro, a luz, 
O fogo. Nada vem.

Esse momento, que exibe a minha imobilidade 
E põe-me qual uma mosquinha presa na teia
De um ser cósmico gigante
Mensageiro do caos.
Ele cede em mim.

Não há próximo ato, esse momento infindo é tudo.
Os meus medos, as minhas mágoas, juntos
Tecem o cansaço que desce 
Sobre o meu corpo mudo. 

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Ser de Água

As minhas emoções não são evitáveis. 
Não queira evadir-se, 
Que eu não sou bicho de correntes.   
Bicho pode ser gente? 
A água sabe ser condescendente. 
Gente pode ser bicho!
Basta encarar a sua revolta,
Para que se pergunte: 
A água tem forma? Se tiver...
Suponho que tenha sido primeiro a de menina. 
Presa na ausência. Sozinha. 
Submersa na crisálida tácita 
Da antecipação ao próximo golpe. 
O medo... paralisa...tudo... 
O medo é um ser 
Que quer ser senhor.
E traz no seu cajado 
O silêncio brutalizado. 
Mas as minhas emoções inventam e invadem
A boca que responde a este silêncio.
Não tente me silenciar! 
Que eu me alargo de rios e leitos. 
Jorrando o verbo vermelho da água. 
A magia, o sangue, a dor...  Tudo verás! 
Rebentada num vórtice violento,
Esta mulher de fortes sentimentos. Cheia.
De uma profundidade que não cabe. Teimosa.
De uma tempestade que não cessa. Coberta. 
De uma razão que a lógica nem suspeita.
As minhas emoções não pedem licença. 
Sei afagar e também posso afogar.
O meu peito é um mar revolto.
Urgido pelo próprio capeta. 
O meu destino é agudo. 
Traçado em comunhão
De bênçãos pela imanência
Do divino Espírito Santo!
Eu sou o berço e a cova de mim mesma.  
O oceano e a casa deste meu ser de água...


Imagem: Arthur Prince Spear. 

sábado, 21 de outubro de 2023

Sobre Meninos e Meninas

Durante uma de nossas piores discussões, 
finalizou dizendo-me, você é só uma menina.
Fiquei com raiva naquele momento, 
mas não pude discordar. 

Eu sou. 
Só. 
Uma. 
Menina. 

As pessoas embriagadas de raiva são capazes,
capazes inclusive de dizer muitas atrocidades. 
Algumas chegam até serem ligeiras verdades.
Mas, aquelas palavras... 

Você é só uma menina!

Ecoaram dentro de mim. 

No fundo. 

Não pelo intento da ofensa, 
sim pela deslealdade dele.
Sentimentos de menino.
Sentimentos de menina.

Uma.
Menina.
Só.
Eu sou.

E ele também o era.